Censura e cinema
Para entender o impacto da censura imposta pela ditadura empresarial-militar de 1964 no cinema brasileiro, é preciso relembrar os anos que antecederam o golpe. Em 1955, Nelson Pereira dos Santos, bacharel em direito, reúne um grupo de amigos e produz Rio, 40 graus, marco cinematográfico e obra inspiração para o Cinema Novo. Em Salvador, 1961, um Glauber Rocha ainda estudante, filma seu primeiro longa-metragem, Barravento. Um anos depois, em 1962, o CPC (Centro Popular de Cultura da UNE) roda Cinco Vezes Favela, composto de cinco episódios dirigidos por diferentes estudantes universitários que, em pouco tempo, estariam na linha de frente do movimento Cinema Novo. Em 1963, Glauber prepara Deus e o Diabo na Terra do Sol; Nelson Pereira dos Santos filma Vidas Secas e Ruy Guerra finaliza Os Fuzis. O novo cinema brasileiro, inspirado pelo neorrealismo italiano e a Nouvelle Vague francesa, preza pelo filme de autor, feito fora dos grandes estúdios e que reflita os reais problemas do povo. Sua criatividade e urgência gravam o nome do Brasil na história do cinema mundial.
Toda essa efervescência foi interrompida em 1964. Até o golpe, a censura classificava os filmes apenas pela faixa etária; os cortes de cenas, a remoção de falas e a proibição total da circulação da obra até então não existiam. Com o novo regime, a censura é reorganizada para servir aos interesses dos militares que assumiram o poder. Segundo Leonor Souza Pinto, essa reestruturação da censura pode ser identificada em quatro fases:
- 1ª fase (1964 - 1966), a fase moralista:
Aqui, o foco principal era a preservação da "moral conservadora vigente", defendida pelos setores da sociedade que apoiaram o golpe. A maior parte da censura era feita através de cortes de cenas e falas consideradas "impróprias", por outro lado, as interdições integrais dos filmes ainda não ocorriam.
Os cineastas, preocupados com a distribuição e retorno financeiro dos filmes, criaram em 1965 a DiFilm (Distribuição e Produção de Filmes Brasileiros). Como resposta, os militares criaram em 1966, o Instituto Nacional de Cinema (INC), a fim de regulamentar, distribuir e exibir filmes brasileiros.
Alguns filmes feitos durante essa fase: Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha); Os Fuzis (Ruy Guerra); A Falecida (Leon Hirszman).
- 2ª fase (1967 - 1968), a militarização dos órgãos de censura:
Durante esse período pode ser identificada uma gradual militarização dos comandos nacional e estadual dos órgãos de censura. Foi criado o Conselho Superior de Censura (CSC), composto por 15 membros, oito representantes do governo e sete de entidades civis. Essa fase revela uma crescente preocupação com o conteúdo político das obras.
Alguns filmes feitos durante essa fase: Terra em Transe (Glauber Rocha); El Justiceiro (Nelson Pereira dos Santos); O Bandido da Luz Vermelha (Rogério Sganzerla).
- 3ª fase (1969 - 1974), a censurara político-ideológica:
No período iniciado com a edição do AI-5, a censura evidencia o caráter político-ideológico como ratificação do regime. O governo passa a investir na profissionalização dos censores, ministrando diversos cursos, e, em 1969, cria a Embrafilme, que além de cuidar da distribuição de filmes no exterior, passa a co-financiar obras.
O cinema reinventa sua linguagem, adotando, cada vez mais, a metáfora e a alegoria. Muda-se a forma para se preservar o discurso, surge o Cinema Marginal.
Alguns filmes feitos durante essa fase: Matou a Família e Foi ao Cinema (Júlio Bressane); Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade); Jardim de Guerra (Neville d'Almeida).
- 4ª fase (1975 - 1988), a distensão:
Em 1975, o cinema abandona a metáfora e se reaproxima do grande público. Nesse período, que abrange o início do gradual processo de abertura democrática, a atenção da censura passa do cinema para a televisão. Nas salas de cinema, o controle se torna mais moderado, ao passo de um investimento pesado nas proibições para a televisão.
Alguns filmes feitos durante essa fase: Xica da Silva (Cacá Diegues); Dona Flor e Seus Dois Maridos (Bruno Barreto); Pixote, a Lei do Mais Fraco (Héctor Babenco).
Ao mesmo tempo que as obras sofriam cortes e controle no âmbito nacional, eram exportadas sem interdições para o estrangeiro. Isso fazia parte da política de difusão de uma imagem "democrática" do país para o exterior, que, para os militares, servia como uma fachada de normalidade institucional. Fato qual evidencia que a censura praticada no Brasil, foi um mecanismo essencial para a organização e sustentação do regime, e não apenas uma repressão localizada.
A censura é extinguida com a Constituição de 1988 e a Embrafilme é fechada em 1990. Após duas décadas de perseguição, o cinema brasileiro se encontra fragilizado: as salas de exibição diminuem drasticamente (nos anos 70 elas somavam dois milhões e cem mil lugares, até 2006, se resumiam a quinhentos e cinquenta mil espectadores), e o público brasileiro se demonstra afastado de seu próprio cinema. Mesmo após a redemocratização, não foram criadas políticas públicas sérias que colaborassem com o desenvolvimento de uma indústria cinematográfica sustentável face ao cinema estrangeiro.
Uma sorte (talvez) que podemos reconhecer, é que a censura era feita diretamente nas cópias montadas para exibição, nem roteiros, nem negativos eram afetados. Isso nos permite apreciar, ainda hoje e em sua totalidade, as grandes obras de resistência feitas em um período tão sombrio.
Referências:
PINTO, Leonor E. Souza. O cinema brasileiro face à censura imposta pelo regime militar no Brasil - 1964/1988. Disponível em: < https://www.memoriacinebr.com.br/ >.
Autora: Maria Clara Arbex, estudante de Cinema e Audiovisual na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, integrante da Linha de Pesquisa "Cinema e Ditadura em Plataforma Virtual", ligado ao grupo de pesquisa certificado no CNPq: "Subjetividade, Memória e Violência do Estado".
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